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terça-feira, 20 de maio de 2008

A AUTO REPRESENTAÇÃO DO PERSONAGEM

São duas da tarde em um ônibus na periferia de São Paulo. Passa a catraca uma moça de aproximadamente 22 anos, alta, loira, magra, vestindo trajes curtos, típico estereotipo de beleza comum aos olhos da maioria dos homens. Logo torna-se o centro das atenções e automaticamente 3 homens que se encontram na lateral da passagem quase que simultaneamente retiram seus celulares dos bolsos e simulam ver as horas ou ler uma mensagem instantânea. A moça percebe o fenômeno e observa atentamente os celulares que lhe foram ofertados numa espécie de ritual moderno da conquista, em seguida olha disfarçadamente quem porta qual celular numa análise anatômica criteriosa, depois realiza um balanço da "beleza" e do poder aquisitivo do indivíduo que se insinua para ela e equivalendo essas características pode então escolher um dos rapazes para lançar um sorrisinho sem compromissos, que pode dar início a uma conversa ou acabar meramente numa troca de olhares.
Esta corriqueira situação urbana forjada na concretude cotidiana e regada de valores nem sempre construídos pelas personagens que as vivem, é somente um reflexo do apogeu da tecnologia na vida social contemporânea, onde as relações se dão em constante diálogo com o consumismo e exaltação do novo. Quantos de nós reparamos fatos como esse acontecer a nossa volta? Quantos de nós pelo menos em parte não confundimos essa história com a nossa? Um dos efeitos primordiais do avanço da ciência na modernidade é o fato do homem ter tornado-se dependente de aparatos tecnológicos para mediar seus laços humanos e afirmar sua personalidade. E demonstra isso não só quando utiliza um celular da moda, mas também quando deixa explicito seu perfil, sua atitude, sua tribo (ex: tipo intelectual,descolado, empresário bem sucedido) que o codifica quanto ser social. Walter Benjamim[1] atentava a seguinte questão - "Embora o cinema exija o uso de toda a personalidade viva do homem, este privace de sua aura. Se, no teatro, a aura de um Macbeth, por exemplo, liga-se indissoluvelmente a aura do ator que o representa, tal como essa aura é sentida pelo público, o mesmo não acontece no cinema, no qual a aura dos interpretes desaparece com a substituição do público pelo aparelho. Na medida em que o ator se torna acessório da cena, não é raro que os próprios acessórios desempenhem o papel dos atores". Nos tornarmos mecanismos inertes na mão da tecnologia é um dos maiores perigos que a modernidade pode trazer a convivência entre os homens, pois quando preferimos nos comunicar por MSN ou orkut em distâncias irrisórias e preferimos ainda mandar abraços virtuais a sensação transcendental do calor humano, petrificamos nossos sentimentos e a vida acaba por perder o sentido. Essa observação habitual além de não ser uma novidade, não pretende incitar apocalipses, mas sim lembrar que a tecnologia deve existir para auxiliar as relações humanas e não criar um espaço onde cada vez mais o homem se relacione com máquinas.
A evolução dos meios de comunicação de massa ao longo dos tempos tem nos suscitado a construção de novos arquétipos, novas imagens mentais comuns, que transportam-se para realidade através de personagens que de tão clichês são possivelmente entendidos como uma herança recente que a nossa mente aprendeu a pautar-se, são os frutos da geração que se desenvolveu na frente de uma tv e/ou computador, tão fluída e tão dinâmica que mal tem tempo para refletir sobre as condições que vive, sobre as relações que tem, que mal tem tempo para formar uma opinião sobre algo, apenas engole tudo vorazmente como se fosse a última refeição a fazer, deixa que a vida da novela torne-se a sua pela falta de tempo de ter suas próprias convicções, de ter sua própria vida. Levado pela inércia num estado de catarze habitual, disfarça sua palidez com um creme qualquer que parece dar vida a pele, mas não a alma.
Na era digital a técnica é fundamental e se manifesta não só no âmbito profissional, mas no jeito que aprendemos a ser e isso é facilmente identificável quando ouvimos frases do tipo "vou investir nessa relação" referindo-se a dedicação ao relacionamento. Ou ainda quando em posição favorável dizemos "estou no lucro". São falas que povoam o inconsciente coletivo de forma tão sutil e com tanta paixão que nem notamos estar lidando com sentimentos e não dinheiro. As condições de vida em meio a cidade, rodeada de vícios de consumo e rapidez de ações vai envolvendo cada um de nós da forma mais sensível, e nesse ponto somos todos personagens, pois no caos de informações todos tem seu lugar, tanto os empresários, como os ripies, os camelôs e os play boys, todos podem expor suas opiniões e modos de vida e conquistar ou não adeptos, pois o sistema de coisas já previa nossa tendência aos clãs e apenas tratou de fomentar a segmentação em busca de novos mercados. A moça loira do ônibus ao realizar sua seleção também procura o personagem ideal para seu clã, ela se conhece quanto personagem e conhece seu nicho, assim sendo tem completo entendimento de quem escolher para si, baseada nos valores que foi ensinada a cultivar, pelos programas de tv, pelos pais e pela religião. No ciclo frenético onde cresceu tudo foi ensinado menos a discordância e a reflexão, afinal tudo tem um padrão e quem muda muito de opinião é volúvel.
Então como robôs de uma enorme e produtiva máquina seguimos reproduzindo os valores de quem pode contar a história, seguimos repetindo como papagaios uma ladainha que não sabemos ao certo o que quer dizer ou se sabemos empregamos numa realidade não compatível, é quando o oprimido assume o discurso do opressor e passa a viver na eterna esperança da ascensão que de tão abaixo dos pés mais lembra um precipício. Nessa lógica se constroem e se mantém os mais antigos preconceitos da humanidade, o da mulher dona de casa, o do negro sem alma, o do pobre trabalhador, o do jovem vagabundo, do homossexual pervertido, etc. A cultura depende dos hábitos e valores passados pelas gerações para tornar-se uma realidade social e se essa realidade que vivemos é infestada de conceitos retrógrados e individualistas isso se deve ao fato de que nos adaptamos historicamente as mais duras condições de subsistência negando quem realmente somos em prol de um discurso coletivo minimizador e "pacífico" e nesse contexto vale lembrar uma frase de Mayacovisky[2] "... e por não falarmos nada, já não podemos dizer nada". Nossa mudes e passividade nos solidificou quanto classe e nos moldou a imagem e semelhança da elite dominante, ainda que nossa essência se desconheça diariamente neste processo, como uma mentira que de tão repetida acaba por tornar-se verdade.
Mas apesar de tudo a era digital tem potencial para servir a outros propósitos mais humanos e conscientizadores, embora haja um turbilhão de problemáticas a serem levadas em consideração, há benefícios que extrapolam o aspecto econômico-social e intervêem diretamente na relação do individuo consigo mesmo e com o mundo. A arte que fora sufocada pelos séculos de mercantilização dos valores é que deveria suprir essa demanda, de reflexão e ação sobre a existência, mas hoje mesmo ela já segue os padrões capitalistas reprodutivos, é o que Adorno[3] chamava de "Indústria Cultural", a responsável por uma sociedade dependente de mitos e incapaz de julgar autonomamente e conscientemente os fatos do dia-a-dia, um enorme balaio onde a música tem moldes de sucesso público, onde a pintura, a literatura tem moldes de sucesso público, onde o teatro e o cinema tem moldes de sucesso público e fora dessa lógica quase nada sobrevive. E a conseqüência disso é uma castração sem limites que determina gostos e pensamentos massivos. O que nos é passado é que a arte é imaculada e que ninguém que não tenha dom pode concebe-la, mas a essência do homem persiste e como gramíneas que emergem do concreto, inovações teimosas surgem de tempos em tempos dos undergrounds da sociedade e mesmo sendo por muitas vezes usurpada e esgotada pela mídia constituem uma saída louvável para falta de criatividade. E é nesse ponto que a tecnologia vem contribuindo como uma válvula de escape no contexto de estagnação atual, onde tudo parece já ter sido dito ou feito.
Um bom exemplo disso acontece no caso do vídeo onde o barateamento dos equipamentos de suportes digitais possibilitou o acesso a produção de filmes a comunidades que nunca antes puderam contar suas histórias, pelo contrário, ou elas "não tinham nada a dizer" ou apenas se encontravam na condição de personagens de histórias contadas pela "elite intelectual" das classes mais abastadas. Esse é um grande passo na direção da socialização dos meios de produção da arte, passo que possibilita que novas perspectivas sejam lançadas sobre a realidade e que novas percepções estéticas possam existir, porém como tudo no capitalismo vira produto pode também essa manifestação facilmente transformar-se em algo meramente vendável, por isso faz-se necessário a nova produção videográfica periférica aproveitar seu potencial e lançar novos desafios na área, novas formas de interpretar, de registrar, de montar. Formas essas que busquem uma identidade na vivência e no olhar do personagem e não na reprodução, na história e não na negação, com atores endiabrados que fujam o roteiro em busca de uma experiência com o "impossível", com filmadoras quaisquer (baratas ou não) que de tão vicerais tornem-se o próprio cinegrafista num movimento onde o olhar é subjetivo e não a câmera, sem diretores, sem produção, tão sem regras que possibilite inclusive, se for o caso, utilizar-se de todo o formato do cinema clássico para mostrar sensações nunca antes expressas. Onde também a exibição e distribuição destes conteúdos possa obedecer outras lógicas que não a do lucro em salas de projeção que mais parecem alcovas da alienação. Obras distribuídas naturalmente nos computadores domésticos por meio de cópias sem direito autoral, uma obra livre na concepção e no contato com o público. Assim com previa Artaud[4] num espetáculo sem separação entre a apresentação e o público, sem adoração de mitos, com personagens reais que não só estão na tela, mas também fora dela, numa simbiose que não permita separação entre o realizador e o espectador, sem intervenções forçadas, mas espontâneas à ponto de alterar o rumo do previsto. O vídeo como meio dialógico da interação entre os seres, sem rompimento entre a vida e arte.
Sendo assim o que acontecerá se não a modificação dos já surrados moldes televisivos? A modificação da visão de mundo, da consciência popular, dos valores? Modificação que não garante a eliminação do antigo padrão, muitos de nós não saberíamos o que fazer sem os Rambos e Capitães Nascimento do cotidiano virtual que dão sua vida por nós como Jesus já o fez há milênios atrás na cruz, mas dá ao menos espaço ainda que forçado para que outras formas possam crescer e expandir-se no espaço público, amadurecendo processos de autoconhecimento com saberes que podem dar voz ao personagem e torna-lo agente de sua própria realidade, agente interventivo no meio que habita, tão mutante e tão belo como tudo que pode viver e tomar decisões independentes.


Por: Daniel FagundeS.




[1] Walter BENJAMIN, Os Pensadores:Benjamin, Habermas,Horkheimer, Adorno P 11
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[2] Mayacovisky...
[3] Theodor ADORNO, Os Pensadores:Benjamin, Habermas,Horkheimer, Adorno P 13.
[4] Antonin ARTAUD, O teatro e seu duplo, P74

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